Barulhos constantes, ameaças, agressões verbais, desacato a funcionários, desrespeito às normas do condomínio.
As condutas que caracterizam o chamado morador antissocial têm sido cada vez mais debatidas no Brasil, especialmente em contextos urbanos e de alta densidade populacional. Agora, uma proposta de atualização do Código Civil quer reconhecer expressamente essa figura, o que poderá facilitar medidas judiciais em situações de conflito.
Hoje, o Código Civil (art. 1.337, § único) já prevê sanções para condutas que prejudiquem a vida condominial, como multas elevadas e, em casos extremos, ações judiciais para limitar o uso da unidade. No entanto, não existe, ainda, o reconhecimento legal expresso da figura do "morador antissocial".

Só que isso pode mudar em breve. Conforme explica o advogado Zulmar Koerich, especialista em questões condominiais, está em discussão no Congresso uma proposta de atualização na legislação que inclui esse conceito e permite penalidades mais objetivas e eficazes, como a expulsão do condômino, mediante deliberação em assembleia e ação judicial específica.
“A regulamentação trará, de forma mais clara e segura, o procedimento a ser seguido, inclusive resguardando o contraditório e a ampla defesa”, pontua Koerich. Ele defende que a aprovação do texto pode trazer mais segurança jurídica e facilitar o enfrentamento de situações extremas, como a que aconteceu em um condomínio da Grande Florianópolis.
A síndica profissional Daniela Igor, que há 20 anos atua no setor, relata que em um dos empreendimentos que administrava o problema começou com um casal que brigava muito. “As discussões eram muito recorrentes e as pessoas envolvidas sempre gritavam muito alto. Para controlar a última briga registrada foi preciso, inclusive, acionar a Polícia Militar e o marido acabou deixando o imóvel”, relata.

Só que a confusão não parou por aí. A mulher, que permaneceu no apartamento, seguiu apresentando um comportamento instável e antissocial, com episódios de confronto com moradores de outras unidades. “Muitas pessoas se sentiram intimidadas, pois ela fazia abordagens no corredor para dizer, à cônjuge do vizinho, que já tinha mantido relação sexual com o seu marido”, descreve a síndica. Além disso, também foi identificado que ela passou a receber clientes no seu apartamento para fazer programa.
“No primeiro momento notificamos a moradora, que após receber a citação entrou em contato comigo para se explicar. Como ela era locatária da unidade, também acionamos a proprietária para compartilhar o que estava acontecendo. Ela foi multada algumas vezes e a imobiliária entrou com processo de despejo, que resultou na saída dela em função de todo o dano que estava provocando no condomínio”, compartilha Daniela.
Morador antissocial
Outra história que segue na mesma linha vem do síndico Rafael Irani da Silva, com mais de 16 anos de experiência. Ele relata que quando administrava um condomínio de alto padrão, o morador da cobertura resolveu transformar o seu apartamento em uma boate.
“Vizinhos de andares bem abaixo do dele começaram a reclamar, pois passaram a sentir na sua unidade a vibração do som muito alto. Sendo assim, foram aplicadas algumas penalidades, entre elas multa, até que o incômodo foi levado e avaliado em assembleia, que o classificou como condômino antissocial”, diz Silva.
De acordo com o síndico, inconformado com a situação, o morador entrou na justiça contra o condomínio, para tentar reverter a decisão da assembleia, mas acabou perdendo a ação.
Diante disso, e levando em consideração quando o morador é o proprietário do imóvel, Koerich lembra que, em caso de exclusão judicial, o condômino mantém a propriedade, mas perde a posse direta e o direito de residir no local, como medida extrema para proteger a coletividade condominial. “Trata-se de uma restrição ao exercício da posse, fundada na função social da propriedade e na vedação ao abuso de direito”, destaca Koerich.
Mudança no Código Civil
O Código Civil tipifica genericamente as condutas que levam à caracterização de um condômino antissocial e suas consequências. Atualmente, o art. 1.337 só prevê penalidades como multa para o condômino que tiver comportamento incompatível com a vida condominial.
Dessa forma, o advogado Camacho, referência em direito condominial, recomenda que, diante da constatação de condutas antissociais, o síndico promova a aplicação das penalidades regimentais até o teto limite de cinco contribuições condominiais.
Caso as condutas permaneçam sendo reiteradas, ele orienta que o síndico convoque uma assembleia com a finalidade específica de promover a aplicação da penalidade de até 10 contribuições, também prevista na legislação, tendo como condição obter o quórum de 3/4 do total dos condôminos, sem contabilizar o voto da unidade a ser penalizada.
“Como o quórum é elevado, o síndico poderá lançar mão de expedientes como assembleia em sessão permanente e a realização do ato de maneira híbrida, para a obtenção da quantidade de votos necessários”, pontua o advogado.
No entanto, se aprovada pelo Congresso Nacional, a proposta de atualização inclui expressamente o termo “condômino antissocial” e amplia a possibilidade de aplicação de penalidades mais severas, como a privação do uso da unidade em casos extremos.
Caso no Estado é exemplo
Em Santa Catarina, o tema voltou aos holofotes após o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgar o caso de um condomínio que tentava afastar um morador com histórico de comportamento agressivo e incompatível com a vida em comunidade. O caso, que envolveu registros de ameaças a vizinhos e desacato a síndicos, reacendeu discussões sobre os limites da tolerância e os caminhos legais para lidar com esse tipo de situação.
Como conta Koerich, recentemente ele atuou em um caso envolvendo um morador com surtos psicóticos, uso de drogas e posse de armas dentro da unidade condominial. “Após episódios de grave ameaça a outros moradores e intervenções da Polícia Militar, ele foi preso e transferido a uma clínica psiquiátrica”, relata.
Dessa forma, diante do risco iminente à coletividade, os condôminos reuniram-se em assembleia e deliberaram pela proibição do seu retorno e pela propositura de ação judicial. Foram juntados laudos criminais que atestavam a periculosidade do morador.
“A juíza responsável deferiu liminar para impedir o retorno do condômino ao condomínio. Decisão que consideramos inédita no Estado e representativa da proteção ao interesse coletivo em ambientes residenciais”, pontua Koerich.
A dificuldade da prova
Uma das maiores dificuldades enfrentadas pelos condomínios é produzir provas robustas para demonstrar que o morador ultrapassou os limites do razoável. Por isso, a comprovação do comportamento antissocial exige um conjunto de documentos, que pode incluir: advertências e multas aplicadas pelo condomínio; boletins de ocorrência policial; imagens e vídeos do circuito interno de segurança; relatos de moradores e testemunhas; registros de assembleias; e manifestações formais da coletividade. Sendo que, de acordo com os especialistas, o primeiro passo para a comprovação de que o morador é antissocial é documentar e reunir todas as condutas anormais do condômino.
Segundo Camacho, antes de a situação escalar para a aplicação de penalidades e/ou ocorrer a judicialização, é absolutamente recomendável a busca pelo diálogo junto ao condômino infrator. “Para comprovar as tentativas de solução administrativa frustradas, é fundamental que o condomínio faça notificações formais destinadas ao infrator, dando-lhe prazo para defesa e solicitando-lhe a alteração de seu comportamento”, explica.
Além disso, o síndico deve aplicar as sanções previstas na convenção e no regimento interno (advertências e multas) e, esgotadas essas medidas, convocar assembleia geral para deliberar sobre a propositura de ação judicial de exclusão. Enquanto a atualização na legislação não for aprovada, a soma dessas evidências é crucial para que o judiciário reconheça a gravidade das condutas e, em casos extremos, autorize até mesmo a expulsão do condômino antissocial, medida já admitida pela jurisprudência em caráter excepcional.